A Festa da Divina Misericórdia, no segundo domingo do tempo da Páscoa, retrata a propriedade da misericórdia do Pai dedicada à humanidade, a partir da amorosa oferta de Deus: seu Filho Jesus, o Redentor, morre na cruz e ressuscita, pela ação vivificante do Espírito Santo. A Festa, instituída na Igreja Católica por São João Paulo II, contribui para acolher os ensinamentos do tempo pascal que, se vividos e acolhidos, podem mudar vidas e o próprio rumo da sociedade. Não compreender o alcance luminoso da Divina Misericórdia é arriscar a se perder nas incredulidades que levam à soberba, aos radicalismos, à perda da ternura que é essencial para superar inimizades, comprometendo gestos de amizade social e, consequentemente, a fraternidade universal.
Convence sobre os riscos da incredulidade o episódio narrado pelo evangelista João, quando conta sobre a arriscada ausência do apóstolo Tomé da comunidade dos primeiros discípulos de Jesus. A comunidade, embora emoldurada pelo medo e, por isso mesmo, vivendo “a portas fechadas”, é o lugar singular para experimentar a presença misericordiosa de Deus, manifestada na presença amorosa de Cristo Ressuscitado. Ao ouvir o testemunho alegre dos outros apóstolos, anunciando a vitória da vida sobre a morte, por terem visto o Senhor, Tomé reage com soberba. Impõe condições para acreditar no relato dos outros discípulos, encharcado pela comum pretensão humana de se julgar proprietário das melhores razões, das justificativas mais plausíveis, desconsiderando outras perspectivas. Insolente e orgulhoso, Tomé diz que se não conferir as mãos e os pés de Jesus, se não colocar o seu dedo no lado chagado do Crucificado-Ressuscitado, não se abrirá à experiência de crer.
Tomé rege-se, assim, por um orgulho capaz de fecundar o autoritarismo e de invalidar o testemunho dos outros apóstolos, agraciados pela presença visível de Jesus Ressuscitado. O incrédulo e soberbo é salvo pelo gesto misericordioso de Jesus, que não desistiu de Tomé, mas desmontou seus argumentos, oferecendo-lhe a oportunidade para a cura da incredulidade. O Mestre fez brotar do mais profundo do coração de seu discípulo a confissão: “Meu Senhor e meu Deus”. O risco da incredulidade é grande e perigoso. Pode ser sutil, sendo capaz de camuflar a força dominadora do egoísmo com aparentes boas ações. Mas, no fim, prevalece o mal provocado pelo egoísmo, que leva a personalismos capazes de dogmatizar conceitos sobre o semelhante, de eleger compreensões que inviabilizam a convivência com quem pensa diferente. Quem se deixa dominar pelo egoísmo torna-se incapaz de dedicar amor fraterno aos que não integram o seu “clube de amigos”, seu grupo político-partidário, a torcida de seu time, alimentando abominações e preconceitos.
A doença da incredulidade, temperada pelo egoísmo e pelo orgulho no coração humano, impede a solução de graves problemas sociais, consolidando a expressão de perversidades e de exclusões. É mal tão perigoso que pode levar ao risco de se invalidar perspectivas diferentes das próprias convicções. Para enfrentar esse mal, deve-se viver a misericórdia – único selo autêntico para validar processos e escolhas que busquem o bem do semelhante. Há um caminho a percorrer para se aprender o exercício da misericórdia, tendo como horizonte diário o exemplo de Jesus Cristo, o rosto da misericórdia do Pai – que é rico em misericórdia. Não há outra possibilidade de conhecer e experimentar a misericórdia de Deus senão pela revelação de Jesus Cristo. Deve-se cultivar o amor ao Mestre. Isto significa cuidar para que sejam evitadas atitudes, aparentemente cristãs, mas que, na verdade, estão distanciadas, ou até constituem negação da misericórdia de Deus revelada em Jesus.
Contemplar, permanentemente, o mistério da misericórdia, é sempre se aproximar da inesgotável fonte de serenidade, alegria e paz. Misericórdia é o caminho que proporciona a cada pessoa a experiência de frutuosa e reconciliadora união com Deus, fecundando a esperança fidedigna que salva a humanidade dos pessimismos e das posturas radicais, do rancor e da busca por vingança. Somente a misericórdia de Deus capacita seus filhos e filhas para o exercício da misericórdia, preferindo-a, ao invés de se apegar ao excesso de severidade, sem comprometer jamais a verdade e o bem. Uma capacitação essencial para alimentar o altruísmo, qualificar a cidadania e fortalecer a fraternidade. Abrir mão da misericórdia, pelo equívoco de confundi-la com fraqueza, é perder a oportunidade de dar novo rumo à própria vida, semeando o bem na vida do semelhante. É sempre importante se lembrar que Deus revela a sua onipotência por meio da sua misericórdia. A misericórdia de Deus perdoa e se compadece. É prova de seu poder. Não constitui uma ideia abstrata, mas um gesto de amor, repleto de ternura e de compaixão, de indulgência e de perdão.
A misericórdia de Deus, revelada em Cristo, inscreve lições existencialmente desafiadoras. Cabe ao ser humano aprender a agir seguindo Jesus, seu modo único e irrepetível de tratar os pobres, doentes, marginalizados – Cristo é todo amor e gratuidade. A misericórdia não constitui somente o modo de agir do Pai, revelado em Jesus. É critério para identificar quem são os verdadeiros discípulos de Cristo. Todos são chamados a viver misericordiosamente. E o perdão é a expressão mais evidente do amor misericordioso. Perdoar, gesto de misericórdia, traz serenidade, constituindo uma sabedoria para se investir na solidariedade. A misericórdia convence o coração a abandonar o ressentimento, a violência, a busca por vinganças. Ecoe, na vivência da Festa da Divina Misericórdia, a palavra do apóstolo Paulo, escrevendo aos Efésios: “Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento”. A iluminadora palavra do Apóstolo seja capaz de consolidar, sempre mais, esta lição de Jesus: “Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte