O Papa Francisco, com a sua mais recente Carta Encíclica sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus, presenteou o mundo católico, as pessoas que integram diferentes confissões religiosas, os cidadãos do planeta que buscam construir uma civilização alicerçada no amor. Um presente muito oportuno para a humanidade, que precisa viver fundamentada no princípio que sustenta o amor cristão: Cristo nos amou primeiro, como escreve o apóstolo e evangelista São João na sua primeira carta. Um princípio que emoldura a conduta cristã, incompatível com atitudes contrárias ao amor fraterno e ao compromisso com a amizade social. Na riqueza da Carta do Papa Francisco – que ilumina o horizonte sombrio da contemporaneidade, ferida com tantas guerras, crescente violência, exclusões sociais vergonhosas e com o desrespeito ao meio ambiente -, o primeiro capítulo dedica-se à importância do coração.
O coração é o que melhor expressa o amor de Jesus Cristo. O mundo, porém, encontra cada vez mais dificuldade para compreender o significado do coração, pois aprisiona-se, facilmente, às racionalizações que levam a uma rigidez demoníaca. Essa rigidez cria cegueira para o sentido verdadeiro, belo e encantador da existência humana. Impede o aprendizado de lições capazes de configurar nova realidade, mais fraterna e solidária. A referência ao coração remete ao centro espiritual do ser humano, onde habitam emoções e pensamentos – instância onde se configuram decisões importantes na vida e na rede de relacionamentos. Por isso, a literatura clássica e a filosofia, também a arte e a música se referem ao coração como centro decisivo na formatação de condutas, definição de escolhas, iluminação de rumos e fonte de sentimentos capazes de humanizar todos e tudo.
Bem lembrada na Carta Encíclica é a referência aos discípulos de Emaús, narrativa do Evangelista Lucas, capítulo 24, quando caminhavam acompanhados por Jesus Ressuscitado. Sem ainda perceber a presença do Mestre, seus corações ardiam quando Ele lhes falava pelo caminho. O coração, portanto, é sempre compreendido como centro e segredo da força que é a maior, em comparação com outros poderes, sendo capaz de sustentar o amor verdadeiro, construtivo. Quando esse centro da vida humana é envolvido com superficialidades ou futilidades, compromete-se o que é mais sagrado e sublime de cada pessoa. E tudo que se constrói sem o coração carece de bases sólidas, podendo desfigurar situações que se contaminam por mentiras, aparências sedutoras e modos de agir que expressam falta de clarividência espiritual.
O retorno espiritual e afetivo ao próprio coração, reconhecendo-o como fonte de força, capacita o ser humano para alcançar respostas fundamentais: “o que sou”, “o que procuro”, “qual a razão e o sentido de eu estar no mundo”, “o que significo diante do semelhante e de Deus”. O alcance dessas respostas qualifica a própria existência, superando vaidades, disputas pelo poder, a ambição de se sobrepor ao semelhante. Papa Francisco aponta, então, a importância de regressar ao coração – a fonte e a raiz de convicções, paixões e escolhas. Não pode faltar o que vem do coração, sob pena de se balizar, perigosamente, o comportamento humano apenas na dimensão racional-tecnológica ou instintiva. Assim, perder ricas oportunidades de avanços humanitários pela carência de sentimentos modelados a partir de relevante qualidade humanística e espiritual.
Ao faltar o que nasce do coração corre-se o risco de se deixar envolver pelos radicalismos perversos, balizados por ideologias e escolhas que eliminam o semelhante, em razão de divergências. O exercício de voltar-se para o próprio coração possibilita alcançar o antídoto para combater todo tipo de individualismo doentio, perigoso e ameaçador, que pavimenta o extremismo e a violência. Reconheça-se a necessidade de se aprender a agir com o coração, o que jamais pode ser considerado sinal de fraqueza. E para agir com o coração é preciso permanentemente cultivar amadurecimento, buscando curar feridas que marcam a história de cada um. Ora, existem respostas que, obviamente, a inteligência, por si só, não é capaz de dar, sublinha o Papa Francisco, acentuando que a verdadeira aventura pessoal é aquela que se vive com o coração.
Vale dedicar-se à superação do problema grave da sociedade contemporânea que é o de desvalorizar o coração, centro vital. Uma tendência encontrada já no racionalismo grego e pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou nas diversas formas de materialismo. O coração ainda encontra pouco espaço na antropologia. É uma noção estranha ao pensamento filosófico, afirma-se. Deu-se preponderância ao tratamento de outros conceitos como razão, vontade e liberdade. Perde-se muito pela carência de adequado tratamento ao centro vital do ser humano, unificado pelo amor. Desvalorizado o coração – se não é suficientemente considerado diante da hegemônica ênfase na inteligência e na vontade – deixa-se de agir com o coração, ou de buscar a sua cura, sublinha o Papa Francisco. Afirma ainda, com força de advertência: quando não se consideram as especificidades do coração, ficam perdidas respostas a muitas questões. Perde-se a possibilidade da poesia e do encontro com o semelhante.
Importante sempre afirmar e saber que se tem um coração coexistindo com outros corações – caminho de superação do mal, da frieza e da indiferença que mata. Coração é lugar de acolhida. É preciso, com uma expressão forte e abrangente, afirma o Papa Francisco, colocar todas as ações sob o controle político do coração, um entendimento que merece ser aprofundado, para alimentar a força capaz de desencadear especiais mudanças no horizonte da solidariedade. Neste tempo tão impactado pelas tecnologias, quando algoritmos modelam o agir humano, vale buscar reaprender a deixar-se guiar pelo coração, acolhendo as ilustrativas abordagens partilhadas na Carta Encíclica do Papa Francisco.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte