A Quaresma, neste tempo que corre veloz, chega para qualificar a vida de todos, pela luz luzente da Palavra de Deus, pela riqueza de seus propósitos e do seu horizonte. O tempo quaresmal propõe uma disciplina – caminhar pelo “deserto”, dinâmica para encontrar Deus e, assim, dissipar as sombras de rostos envelhecidos pela frieza da vaidade, de olhares anuviados por fantasias. Rostos e olhares incapazes de enxergar a direção de mudanças essenciais para reconquistar o sentido da vida. A travessia do “deserto”, interpelação da Quaresma, contribui para vencer superficialidades, curar o ser humano de indiferenças que matam, afastando-o de lógicas perversas. Acatar o convite desafiador de vivenciar o “deserto” é compreender que há um bem essencial a ser resgatado. Bem que foi perdido pelos estreitamentos de quem é benevolente apenas com os que partilham pontos de vista e perspectivas ideológicas, pela força do pecado que contamina a condição humana.
Caminhar “deserto adentro”, com a motivação de encontrar Deus, única fonte capaz de saciar o ser humano, inclui prestar atenção em mandamentos que se configuram como dinâmica educativa e qualificadora da vida. Um exercício essencial para conquistar e desenvolver adequada sensibilidade na recomposição interior de cada um. Na travessia deste tempo quaresmal, ecoa mais forte o trinômio jejum, oração e esmola, práticas simples e exequíveis, conforme as possibilidades de cada pessoa. São práticas capazes de devolver ao coração do ser humano uma percepção adequada da realidade, com propriedades para alavancar correções e configurar novas respostas para muitos problemas, inspirando a participação qualificada na construção do bem comum.
O caminho pelo “deserto” confronta situações de escravidão, constituindo itinerário para efetivar a conquista da autêntica liberdade. Com simplicidade, as dinâmicas do jejum, da caridade e da oração empreendem um processo de recomposição necessário e urgente, para enfrentar os muitos adoecimentos provocados pelos vazios existenciais. Levam à qualificação do ser humano, capacitando-o para partilhar palavras capazes de renovar esperanças, para agir na reconfiguração do tecido sociopolítico. O “deserto” a percorrer é a interioridade de cada um, com “regiões” inóspitas que devem ser trabalhadas. Não se pode cuidar apenas de problemas externos, mas buscar também qualificação interna, inclusive para adequadamente contribuir na edificação de um novo tempo para a humanidade.
A prática do jejum, da oração e da esmola não se limitam às restrições de alimento, ao dizer alguma jaculatória ou mesmo dispor de algo supérfluo em favor de quem não tem nada. A conquista proposta e possível com o jejum, a oração e a esmola é de uma estatura humana e espiritual capaz de garantir paz interior e fazer, do ser humano, um instrumento de Deus para transformar o mundo. No horizonte deste indispensável propósito, sem concorrer com as vivências das práticas quaresmais, a Igreja Católica no Brasil promove a Campanha da Fraternidade. Vale lembrar, como memória agradecida, a importância desta promoção, já por sessenta anos, com a propriedade específica de lançar o olhar sobre a sociedade brasileira, para permitir que a luz da fé enseje um caminho que leve à sua transformação. A sociedade brasileira sofre por incompetências nos diferentes desempenhos cidadãos e pela fraqueza do testemunho de fé, perpetuando descompassos e adiando soluções para problemas urgentes.
A Campanha da Fraternidade 2024, como estrela no horizonte das luminosidades da Quaresma, à luz da recomendação-advertência de Jesus, “Vós sois todos irmãos e irmãs”, desafia com o desenho da meta de se pautar as relações na amizade social, conforme as lúcidas e interpelantes argumentações do Papa Francisco, na sua Carta Encíclica Fratelli Tutti. Amizade Social se põe, então, como nobre propósito e meta para a vivência da fé e da cidadania qualificada. Um propósito sem fronteiras, para além de objetivos confessionais, pois se trata de demanda urgente da contemporaneidade. Essa urgência é evidenciada pela prejudicial indiferença que contamina relações, pela divisão e pelos confrontos com consequências graves e perdas irreversíveis, principalmente para os mais pobres.
Os que creem e todos os que buscam exercer a cidadania de modo qualificado precisam lembrar do que diz o Papa Francisco: todos estão no mesmo barco, perecendo ou salvando-se juntos. Todos são chamados a investir, abnegadamente, na amizade social. Amizade é, pois, um sentimento precioso, dom de Deus, que torna exitoso projetos e processos, na contramão de inimizades que incendeiam guerras. O propósito é cada um se tornar construtor da amizade social pelo insubstituível caminho do diálogo, que edifica horizontes novos de compreensão.
É hora oportuna de compreender mais e promover a amizade social, no inspirador horizonte da Carta Encíclica do Papa Francisco, investindo no amor que é base das relações sociais, ultrapassando fronteiras. Esse amor precisa ser vivido como compromisso – comunicar com a vida a mensagem de Deus, aprendendo e efetivando a lição do Mestre Jesus: “Vós sois todos irmãos e irmãs”. A verdade anunciada pelo Mestre ecoe forte nos corações, para que sejam efetivadas posturas coerentes com o princípio da amizade social, para alavancar tempos novos marcados pela fraternidade universal.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte