
“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. (Jo 13,1). Assim, o redator do Quarto Evangelho, de maneira solene, manifesta profunda conexão entre o mistério salvador de Jesus Cristo e o rito da antiga Páscoa. No Evangelho de Marcos, menos requintado, porém não menos preciso, o redator localiza melhor a festa da Páscoa, remetendo-a ao contexto das tradições judaicas: “No primeiro dia dos ázimos, quando se imolava a Páscoa…” (Mc 14,12). Já na narrativa da Ceia pascal, é apresentado duplo alcance da Nova Páscoa celebrada por Jesus: “sangue da Aliança, que é derramado…” (Mc 14,24) e “… não beberei do fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus” (Mc 14,25). A Nova Páscoa é descortinada em três tempos: passado, presente e futuro.
No passado, Deus se manifestou a favor dos hebreus e contra os egípcios (Ex 14,15-15,1). Para realizar a libertação de seu povo, o Senhor passou na terra dos egípcios, matou os primogênitos dos opressores e poupou a vida dos primogênitos hebreus. Tirou, com mão forte, seu povo da escravidão. Providenciou que seu povo atravessasse o Mar Vermelho a pé enxuto e com segurança, enquanto afogava os egípcios e seus cavalos de guerra. Foi em asas de águia que Deus transportou seu povo (cf. Ex 19,4), fazendo-se coluna luminosa e sombra generosa (cf. Ex 13,21-22), até à Terra onde corre leite e mel. Para selar este evento salvífico, Deus realizou uma aliança com seu povo, no alto da montanha (cf. Ex 24,1-11). Sua celebração acontecia a cada ano, no 14º dia do mês de Nisan, com alimentos simbólicos: cordeiro, pães ázimos, ervas amargas… Era o banquete pascal.
No presente, fazendo a memória desses acontecimentos da história de seu povo, Jesus deu novo sentido à Páscoa, selando a nova e definitiva aliança, mediante seu sangue a ser derramado na cruz. Em sua Ceia pascal, Jesus recolhia, ainda, toda a sua vida e seu compromisso com o Reino de Deus, conteúdo de seu Evangelho. Esta Ceia teve o endereçamento direto ao mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, inaugurando os tempos novos da salvação da humanidade. No hoje de nossa história, celebramos este acontecimento, pelo caráter do memorial eucarístico.
A Páscoa da Nova Aliança de Jesus Cristo estava endereçada também às coisas que ainda estão por acontecer, o futuro escatológico, a plenificação de toda obra criada. Na Ceia Pascal, já degustamos, em aperitivo, o que Deus preparou para sua criação, até o dia em que Jesus beberá conosco o vinho novo no Reino do Pai (cf. Mt 26,29b).
A tradição lucana nos apresenta uma expressão solene de Jesus se colocando à mesa pascal: “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes de sofrer; pois eu vos digo que já não a comerei até que ela se cumpra no Reino de Deus” (Lc 22,15-16). Será esta tradição que nos legará o preceito “Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19c). Tal preceito aparece duplamente na tradição paulina (cf. 1Cor 11,23-27). O mandato do Senhor não se restringe simplesmente a celebrar um rito, com minúcias de rubricas… O “isto” que Jesus nos manda fazer em sua memória é bem mais exigente… É fazer o que ele fez, na esteira do que Deus fez na história de libertação de seu povo. É assumir o compromisso pela acolhida do Reino já presente na história. É apontar os caminhos de um mundo novo, regado a justiça, solidariedade e liberdade, enquanto não chega a “ultimidade” do Reino.
Páscoa é salto, é passagem, é travessia. Páscoa é voltar-se para nova dimensão da existência, como Jesus passou da morte para a vida em plenitude. Supõe coragem, valentia e esperança, em dinâmica de conversão. Páscoa tem implicações sociais, supõe explosão para um mundo novo a ser construído com o alicerce da Boa-Nova. Páscoa tem dimensões cósmicas: a ecologia integral e todo o universo gemem em dores de parto (cf. Rm 8,22). É preciso realizar travessias em nossa vida, acolher as exigências do Evangelho, abraçar a cruz de cada dia e colocar-se no seguimento do Senhor, condições para acolher a novidade da Páscoa.
Já vivemos sob a inspiração da Páscoa da Nova Aliança selada no sangue do Cordeiro. Superemos as más ações: injustiças, violências, opressões, corrupções, infidelidades, invejas, intrigas, discórdias… Revistamo-nos da nova realidade de quem acolhe, com alegria, o “novo” inaugurado por Jesus de Nazaré. Façamos a memória da Páscoa da Nova Aliança, em renovada atitude de compromisso com os empobrecidos da história, segundo os apelos do Evangelho, no seguimento de Jesus Cristo encarnado, morto e ressuscitado, para a salvação da humanidade.
Feliz e santa Páscoa-Travessia-Esperança!
Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí