
O grande compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750), dentre inumeráveis e belíssimas composições, deixou-nos uma solene interpretação da Paixão de Jesus Cristo segundo João, intitulada simplesmente “Johannespassion”. O músico compôs sua obra à base dos capítulos 18 e 19 do IV Evangelho, extraídos da tradução luterana, introduzindo textos poéticos, em forma de comentários, de Barthold Heinrich Brockes, contidos no hinário luterano. A estreia da obra se deu em grande estilo na igreja de São Nicolau, em Leipzig, na Sexta-feira Santa, 07 de Abril de 1724.
Além da orquestra, coro e vozes principais, tenor, baixo, soprano e contralto, Bach acrescentou um grande coral para interpretar a participação do povo na trágica narrativa da Paixão de Jesus Cristo. Este exuberante conjunto musical manifesta a grandiosidade do ato cantado em estilo barroco. A musicalidade daí emanada transporta o ouvinte a uma profunda reflexão e espiritualidade. Os textos poéticos, intercalados nas perícopes do IV Evangelho, ajudam nesta reflexão e fazem resplandecer a beleza da narrativa joanina. Apresentaremos, a seguir, três destes textos de Brockes.
O primeiro deles precede a perícope de Jo 18,1-14. Trata-se de um intróito a toda a narrativa que se segue. Em grande estilo, o coro brada: “Senhor, nosso Redentor, a cuja glória em toda a terra é senhora, mostra-nos, através da tua paixão, que tu, verdadeiro Filho de Deus, por todos os tempos, até na maior humilhação, foste glorificado”. Trata-se de um “aperitivo” ao que se vai ouvir e assistir a seguir: o drama da Paixão, desde o Jardim do Getsêmani, até o Jardim do Gólgota.
Bem mais à frente, após a apresentação da ária número 30, “Tudo está consumado!”, entra a narrativa do tenor a anunciar “e inclinando a cabeça, entregou o Espírito”. Daí tem início a segunda referência que desejamos apresentar, comentando a morte de Jesus. Dirigindo-se a Jesus crucificado, o baixo lhe interroga, em magnífico monólogo: “Meu amado Salvador, deixa que te pergunte: agora que foste crucificado e dito ‘Tudo está consumado!’, sou eu livre da morte? Posso, pelo teu sofrimento e morte, herdar o reino dos céus? Todo o mundo foi salvo? Certo, tu não podes responder por causa de tuas dores, mas inclina a cabeça e diga em silêncio: ‘Sim’”.
Por fim, a última referência que aqui trago é do gran finale da apresentação. Após a recitação do último texto joanino, 19,38-42, o coro entoa uma espécie de requiem, embalando o descanso do Senhor. Daí entra o coral, que assume a voz de todo o povo, aclamando em oração: “Ah, Senhor, deixa que os teus doces anjos, no último instante da vida, portem ao seio de Abraão o meu espírito; que o corpo, na sua câmera, bem docemente, sem pena e tormento, repouse até o dia novíssimo. Então, acorda-me da morte, que os meus olhos possam contemplar-te na plena glória, ó Filho de Deus, meu Salvador e trono de graça! Senhor Jesus Cristo, ouve-me: eu desejo louvar-te eternamente!”
A obra retrata a teologia própria que emana do barroco. Mesmo não sendo uma teologia atual, à luz do Concílio Vaticano II, a beleza poética dos comentários de Brockes, alinhavados ao texto joanino, e a riqueza da música de Bach nos fazem vislumbrar a beleza da arte inspirada no cristianismo que, por sua parte, manifesta a beleza da salvação da humanidade.
O filósofo alemão Schopenhauer (1878-1860) entendeu a arte como antídoto ao pessimismo. A contemplação estética nos salva do sofrimento e da dor do mundo (O mundo como vontade e representação, R,J.: Contraponto, 2007, §34). Nietzsche (1844-1900), igualmente filósofo e alemão, entendeu a arte como “única força contrária superior, em oposição a toda vontade de negação da vida”. Segundo ele, “a arte tem mais valor do que a verdade” (A vontade de poder, R,J.: Contraponto, 2008, § 853, 2.4). Dostoievski (1821-1881), um dos gênios da literatura russa, descreveu uma certa beleza que salva o mundo: “É verdade que o príncipe disse, uma vez, que a ‘beleza’ salvaria o mundo? Meus senhores – gritou bem alto –, o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! [,,,] Que beleza salvará o mundo? (O Idiota, Portugal: Presença, 2001, pág. 396).
A beleza que salva o mundo é a beleza da solidariedade, no seguimento incondicional a Jesus Cristo. Bonhoeffer (1906-1945) foi um pastor luterano alemão, preso no campo de concentração nazista de Flossenburg. Ele foi capaz de ouvir a dor do mundo e se colocar nela numa entrega que não foi em vão. Segue o testemunho do médico que assistiu sua execução: “Pela porta entreaberta de um quarto, no acampamento, eu vi, antes que os condenados fossem despidos, o pastor Bonhoeffer de joelhos diante de seu Deus em uma intensa oração. A maneira perfeitamente submissa e certa de ser atendida com que esse homem extraordinariamente simpático orava me emocionou profundamente. No local da execução, ele orou novamente e depois subiu corajosamente os degraus do patíbulo. A sua morte ocorreu em alguns segundos. Em cinquenta anos de prática, jamais vi um homem morrer tão completamente nas mãos de Deus. (D. Rance, Un siècle de temóins. Paris: Fayard-Le Sarment, 2000).
A dor do mundo e o drama da existência assolam as consciências mais sensíveis e fazem sofrer também os miseráveis da história. É com esses miseráveis que Jesus Cristo se identifica na dor de sua Paixão. O dramático Getsêmani, seguido pelo Gólgota, é representativo da condição humana. Bem profetizou Isaías: “Foi desprezado como o último dos homens, homem de dores, experimentado no sofrimento […]. Entretando, ele assumiu as nossas fraquezas, e as nossas dores, ele as suportou” (Is 53,3-4). Na boca de Pilatos encontramos a expressão que une antropologia e cristologia: “Eis o homem” (Jo 19,5b). Nele se vê estampar a beleza que salva o mundo: a beleza da solidariedade de um Deus que se faz humano e assume suas dores e sofrimentos para abrir novo horizonte de esperança, travessia para a Páscoa da Ressurreição.
Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí