
Os noticiários nos dão conta da presença do mal no mundo. Recolhemos aqui algumas manchetes recentes: “Violência é a maior preocupação dos brasileiros”; “Forte terremoto atinge Mianmar, China e Tailândia”; “ONU alerta que situação climática nunca foi tão grave”; “O pantanal está sendo desmatado”; “Invasões de terras indígenas”, “Comunidades quilombolas ignoradas e tentativa de reduzir área protegida” …
É notório que existe um mal no mundo. Movidas por interesses mesquinhos, financeiros e gananciosos, pessoas chegam a destruir os semelhantes e a natureza criada por Deus. Qual é a origem desse mal? Ele é sempre provocado pelo ser humano? Como explicar o mal presente no mundo independente da ação humana? Como pode haver o mal no mundo se Deus existe? Se Deus é bom, como pode haver o mal?
Epicuro, filósofo helenista que viveu na passagem do IV ao III século a.C., formulou o seu dilema nos seguintes termos: “Se Deus é onipotente, então ele pode acabar com o mal. Se Deus é onisciente, então ele sabe que o mal existe. Se Deus é benevolente, então ele tem o desejo de acabar com o mal. Mas o mal existe. Logo, Deus não é onipotente, ou não é onisciente, ou não é benevolente.”
Esse dilema foi aplicado de forma clara pelo Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago. Numa de suas vindas ao Brasil, ocorreu uma forte tempestade com deslizamentos e muitas mortes, inclusive de crianças, no sul do país. Ele logo concluiu: “Se Deus existisse, isso não teria acontecido”. Segundo esse tipo de concepção ateia e até antiteísta, em existindo, Deus teria que tirar todo o mal do mundo. Noutras palavras, a existência de Deus suporia a inexistência do mal no mundo.
Há três tentativas fracassadas de explicar o mal. A primeira delega toda a ação do mal ao demônio. O demônio é visto como uma espécie de “princípio do mal”, voltando à armadilha do maniqueísmo. A segunda delega a autoria do mal a “espíritos desencarnados” que se apossariam de indivíduos fraquejados para vingar um fato passado ou para realizar algo não feito em vida. A terceira tentativa atribui o mal a Deus que se serve disso para castigar os faltosos exercendo sua “pedagogia”. Nos três casos, há um desprezo total pela autonomia e liberdade humanas.
Santo Agostinho aprofundou o tema da antropologia e distinguiu livre arbítrio de liberdade. Se o livre arbítrio é a propriedade humana que nos capacita a ter iniciativa de ação, a liberdade é nossa atração para o Bem que é Deus. Eis aí a destinação antropológica. O ser humano se sente chamado a algo mais, a uma transcendência, caracterizada pelo teólogo Karl Rahner como “existencial sobrenatural”. Diante de nosso agir livre, optamos entre o bem, que vem de Deus e nos leva a Ele, e o mal, que Dele nos afasta. Daí a origem do termo “an-tropos”, aquele que se volta para algo…
Vários pensadores tentaram solucionar essa questão do mal. Santo Agostinho, que superou os caminhos do maniqueísmo, disse que o mal é ausência do Bem, que é Deus. Faz sentido. Deus é bom e o desvio de seus caminhos leva ao mal. É esse o tema do Salmo 1: “Feliz o homem que não vai ao conselho dos ímpios, não pára no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores. Pelo contrário: seu prazer está na lei do Senhor, e medita sua lei dia e noite. […] Sim, o Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perece”.
Também a Didaqué (Doutrina dos Apóstolos) se refere aos dois caminhos, logo no seu primeiro capítulo: “Há dois caminhos: um da vida e outro da morte. A diferença entre ambos é grande”. Isso nos faz lembrar o livro do Deuteronômio: “Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade. […] Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas contra vós: eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência” (Dt 30,15.19).
O apóstolo Paulo viveu um drama existencial: “não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero” (Rm 7,19). Por isso, foi capaz de nos orientar: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,21). Existe um mal que pode ser vencido graças à autonomia e à liberdade humanas, contando com a graça de Deus. É este o mal moral, fruto de opções humanas. No entanto, existe um outro mal que não parte de nossas ações e nem de Deus e nem dos demônios e muito menos de “encostos”. É o mal físico. Brota da condição de finitude da natureza, independe de nosso livre-arbítrio. É o caso das catástrofes. É preciso saber vencê-lo pela solidariedade e pelo amor.
Jesus Cristo, crucificado-ressuscitado, é o Senhor da História, que tira o mal do mundo. Em comunhão com ele, somos chamados a lutar contra o mal a partir do bem, da fraternidade, da partilha e da paz. Iluminados pela sabedoria do Evangelho, somos chamados a construir a civilização do amor, acreditando que “outro mundo é possível”. No entanto, neste outro mundo permanecerá o livre arbítrio e continuará sendo um mundo finito. Nossa fé nos garante que podemos vencer o mal pela prática do bem. O que salva o mundo é o amor e a solidariedade, no horizonte da justiça! Foi isso que Jesus nos fez. Nele, o mal já foi vencido definitivamente!
Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí