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Tropeiro

A atividade dos bandeirantes, com suas incursões além das regiões costeiras do Brasil, passou a exigir aprimoramentos no transporte de mercadorias e de minérios extraídos de regiões ricas, como era o caso de Minas Gerais. Primeiramente, esse serviço era exigido dos indígenas e dos escravizados. Aos poucos, foi se introduzindo o uso de mulas, fruto do cruzamento de burro com égua. Esse animal demonstrava mais resistência para os transportes, seja das sedes das colônias para o interior, seja das minas para os pontos de recolhimento das riquezas extraídas. Cada animal carregava cerca de 120 quilos de peso e chegava a percorrer até 3.000 quilômetros.

Vai se introduzindo a cultura do tropeirismo. Os tropeiros desbravavam a mata virgem em busca de novas rotas para o transporte de mercadorias e riquezas. Geralmente, uma tropa era composta por várias mulas e pessoas com missões específicas. O tropeiro era o condutor da tropa. O arrieiro era a pessoa que cuidava dos animais. Esse termo tem sua origem na interjeição “arrê”, usada para incitar os animais a andar. Além do tropeiro e do arrieiro, havia outros componentes na tropa cuidando das mulas e bagagens.

A cultura do Tropeirismo marcou o Vale do Jequitinhonha. Para cá vinham os tropeiros e daqui se retiravam ouro e pedras preciosas. Guimarães Rosa expressou essa cultura na sua obra memorável “Grande Sertão Veredas” e inseriu Araçuaí no contexto literário do Tropeirismo: “— Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção…”  — o qual era a pedra de safira, que do Arassuaí eu tinha trazido, […]” (Ed. Nova Fronteira, RJ, 2001, 389).

Frei Chico, religioso holandês que chegou no Brasil em 1968, recolheu diversas cantorias populares no Vale do Jequitinhonha. Dentre elas, destaca-se a canção “Tropeiro”, conhecida especialmente na voz de Rubinho do Vale, dentre outros cantores regionais. Essa canção expressa bem a cultura do tropeirismo: “Você me chama tropeiro / Eu não sou tropeiro não / Sou arrieiro da tropa, Marcolino / O tropeiro é meu patrão”. São destacadas aqui duas figuras: o tropeiro e o arrieiro.

A chegada dos tropeiros num povoado ou numa propriedade era motivo de festa: “Os tropeiros vêm chegando / Vem pedir a rancharia / Chama os donos da fazenda, Marcolino / Pra ouvir a cantoria”. A arte e a cultura foram um legado desenvolvido no Vale do Jequitinhonha de forma tão expressiva, com características regionais bastante definidas. A culinária segue essa tradição. O “feijão tropeiro”, até hoje, é mais saboroso nessas terras…

Neste grande sertão do Semiárido, novos tropeiros vêm chegando, não mais com suas mulas. Chegam com máquinas e caminhões pesados para o transporte de nossas riquezas: lítio, grafite, granito, eucalipto, pedras preciosas… Aos poucos vão transportando nossos montes e vales de beleza. Não deixam arte… ficam crateras e rejeitos. Não deixam cultura de vida… espalham cultura de morte: explosões, poeira tóxica, envenenamento de rios, mais sequidão e estiagem.

Tudo isso causa pena… Contemplando esses belos prados, campinas, sertão e veredas, constatamos que “tudo é muito bom”, como Deus contemplou a obra da criação (Gn 1,31). Essa citação bíblica tornou-se o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, cujo tema é “Fraternidade e Ecologia Integral”. Trata-se de uma temática que nos desafia. Na sua Encíclica sobre o Cuidado da Casa Comum, o Papa Francisco nos propõe cuidar da Casa que Deus nos confiou, em termos de uma Ecologia Integral, que passa pela ecologia ambiental, ecologia econômica e ecologia cultural, numa perspectiva de uma ecologia do cotidiano.

O texto-base da Campanha da Fraternidade nos alerta: “Além das pequenas ações que estão ao alcance de nossas mãos, fazem-se necessárias também mudanças estruturais no âmbito da política, da economia e da ética, para superar a crise que nos assola. […] Peregrinando com o Senhor Jesus, que assumiu a nossa carne e a nossa história para peregrinar conosco, mantenhamos acesa a chama da Esperança em uma Ecologia Integral capaz de enfrentar a crise socioambiental, converter mentes e corações, transformar a realidade e reproduzir gestos fraternos e solidários em defesa da Casa Comum” (Texto-base, 61.62)

Pessoas e entidades teimam em lutar pela vida, pelo cuidado com o mundo criado, acreditando que, como Davi, no Vale de Elá, é possível vencer Golias (cf. 1 Sm 17,32-51) hoje, neste Vale de lágrimas. Aqui surgem propostas encantadoras: pequenos proprietários vendem suas valiosas terras, iludidos por valores que podem impressionar… Áreas de proteção ambiental são remarcadas para liberar espaço à mineração. Surgem também ameaças e pressões… Aqui, ilustra a cantoria do Tropeiro: “Palmatória quebra dedo / Chicote deixa vergão / Cacetete quebra a costela, Marcolino, / mas não quebra opinião”.

Essa luta é árdua por amor ao Vale do Jequitinhonha. É preciso ser Profeta da Verdade em favor da vida, Profeta do Vale, com o olhar verde, para cantar a esperança. Somos tropeiros de esperança, “peregrinos de esperança”, como nos recorda o tema deste Ano Jubilar, na certeza de que a “esperança não decepciona” (Rm 5,5). Com a memória recolhida de Frei Chico, conclamo: “Companheiros, me ajudem / Que eu não posso cantar só./ Eu sozinho canto bem, Marcolino / Com vocês canto melhor.

Na esteira do saudoso Frei Chico, o jovem trovador Gabriel nos inspira a viver os apelos da Campanha da Fraternidade deste ano: “Natureza e humanidade / Estão bem conectadas. / Tudo está interligado, Marcolino: / Bichos, rios, homens e matas”. // “Você me chama tropeiro / Eu não sou tropeiro não / Sou arrieiro da tropa, Marcolino. / O tropeiro é meu patrão”. // “Viva o povo deste vale! / Viva a sua natureza! / Daqui tirem seu sustento, Marcolino, / Mas conservem sua beleza”.

Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí

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