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Vida espiritual

O fenômeno da desfiliação religiosa, segundo apontam estudos sérios, não é propriamente um “virar as costas” para elementos e valores do transcendente, desvalorizando a espiritualidade. A vida humana qualifica-se por uma série de circunstâncias, que contemplam o bem-estar físico e social, incluindo ainda a dedicação à espiritualidade. A realidade interior de cada pessoa é um sacrossanto e recôndito lugar de sentimentos, dos valores, da consciência e das convicções. Vale investir no conhecimento e na prática da espiritualidade cristã, uma riqueza incontestável para além dos parâmetros das regras e dos ritos, com força para qualificar o viver humano. Assim, ao se reconhecer que o fenômeno da desfiliação religiosa não significa desconsideração aos valores transcendentes, torna-se necessário aos ritos e parâmetros institucionais assumir complexo desafio: buscar compartilhar suas riquezas espirituais e proporcionar a muitos as experiências ricas e essenciais de uma vida espiritual.

A espiritualidade remete o ser humano ao sacrário de sua própria vida – lá onde se cultiva a experiência mais autêntica da fé, no encontro com Deus. Os místicos cristãos ensinam que Deus tem mais intimidade com cada coração humano que o próprio portador desse coração. Sem cultivar a espiritualidade, corre-se o risco de não conquistar a adequada competência para alcançar o sentido de viver. Perde-se força para enfrentar e superar sofrimentos de todo tipo. Há mais dificuldade no campo relacional, no saber se portar diante do outro, com a adoção de gestos e palavras capazes de promover cada pessoa, respeitando as diferenças, sem autoritarismos. Ao se cultivar adequadamente a espiritualidade, não há risco de intimismo, comprometendo a inegociável dimensão comunitária, aquela que é suporte indispensável na ingente tarefa de construir uma sociedade justa e solidária. A espiritualidade é alicerce e forro do viver humano. Jamais pode significar seguir na direção da alienação ou do risco de se “virar as costas” à realidade, com seus desafios e exigências.

A vida espiritual funciona como fonte de sabedoria e iluminação da inteligência. É força de parâmetro moral indispensável, particularmente neste tempo em que se sabe das ondas destruidoras da corrupção, acirradas pela sedução do poder. No desenvolvimento humano e social, o silêncio e a oração constituem dinâmicas essenciais, caminhos singulares que levam à qualificação da existência. A oração tem alcance muito maior do que a ignorante consideração de que se trata de postura “carola” ou de beatério. Ao invés disso, a dinâmica da oração é o único modo de enxergar a vida no seu conjunto e inteireza, com a iluminação da presença de Deus, inigualável e místico. O silêncio, mais do que uma disciplina, é condição essencial ao diálogo, possibilitando o desenvolvimento da capacidade de escutar, especialmente os clamores dos pobres e sofredores. A vivência da espiritualidade constitui, assim, um caminho que tem tudo a ver com o amor, o amor maior, que ultrapassa os limites das afinidades e das simpatias, estabelecendo alicerces de universalidade na alma, com a competência de debruçar-se, de modo samaritano, a partir do ideal de sempre buscar resgatar o semelhante – jamais massacrá-lo.

A espiritualidade institui a escola do discipulado, conservando a dinâmica saudável, humildemente terapêutica, que faz, de cada um, ao mesmo tempo, aprendiz e peregrino. O discipulado é a adoção de uma vida disciplinada pelo esforço de criar espaço para Deus. Trata-se do desabrochar da percepção do lugar único e insubstituível de Deus no mais íntimo de cada ser. A presença de Deus é mediada pelas circunstâncias e injunções externas, levando à conquista de relações humanas qualificadas. O não desenvolvimento da escuta de Deus compromete as demais escutas. Leva a uma atenção confusa, dedicada a vozes que estreitam decisões, apequenam gestos, comprometem o respeito incondicional à dignidade de toda pessoa humana.

Reconhecer a importância da espiritualidade é sinal de sabedoria, uma necessidade, uma resposta existencial que não pode ser substituída. Trata-se, ao mesmo tempo, de um remédio que, com contribuições da arte e da poesia, oferece paragens necessárias ao coração humano. O episódio da Transfiguração de Jesus, no alto do Monte Tabor, diante dos três discípulos, tem o seu ápice na voz que veio de dentro da nuvem: “Este é o meu Filho Amado, escutai-o!” Espiritualidade é viver no cultivo desta escuta, sabedoria inigualável pela propriedade de sustentar o ser humano, tornando-o instrumento efetivo para a construção de um novo tempo.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte – MG

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