
O Evangelho nos apresenta o risco das tentações (Lc 4,1-13// Mc 1,12-13; Mt 4,1-11). Até Jesus foi tentado pelo diabo no deserto. O diabo tem a missão de mentir e dividir. Já naquele tempo, ele espalhava suas Fake News, fazendo promessas falsas a Jesus para seduzi-lo… Conduzido pelo Espírito Santo, Jesus não se entregou ao poder do mal, venceu a tentação do sentir (prazer), a tentação do ser (poder), do ter (dinheiro). Jesus venceu as tentações pela força da Palavra de Deus que ele cultivava em seu coração. Ao final do texto, Lucas nos diz que “o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno”. Esse tempo oportuno pode ser interpretado como diversas situações da missão de Jesus ou pode ter sido no Monte das Oliveiras, quando pediu ao Pai para afastar dele o cálice da provação e do sangue a ser derramado na cruz (cf. Lc 22,42// Mc 14,32-42; Mt 26,36-46).
O diabo não tem lugar preferencial para divulgar suas mentiras. No Jardim do Éden, disfarçado de serpente, ele começou a espalhar suas versões distorcidas das coisas. Depois que “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31), o diabo tratou de dividir a humanidade, o seu Criador e as criaturas com uma mentira (cf. Gn 3,1-7). Essa primeira Fake News quebrou a harmonia do mundo criado e instalou o caos na criação. Mas Deus, na sua bondade, não abandonou a sua obra à mercê do mal; anunciou que o calcanhar da mulher haveria de esmagar a cabeça da serpente (Gn 3,15).
A arte também retrata cenas das tentações de Jesus, com hermenêutica livre. Numa minissérie ítalo-americana denominada “Jesus” (Roger Young 1999), servindo-se de flashs do futuro da história, o diabo bem trajado (Jeroen Krabbé) tenta Jesus (Jeremy Sisto) que transforme pedras em pão para saciar a fome de crianças e famintos que surgem instantaneamente diante deles: “Você tem o poder de resolver os problemas da humanidade. Alimente este povo, muitos morrem de fome, você pode alimentá-los”, instiga o tentador. Jesus responde: “Eles morrem de fome por causa do coração de pedra de outros homens, não porque Deus deseja”. Noutra cena, contemplando a terra a partir do espaço, o diabo tenta Jesus com o poder e a resposta de Jesus é fabulosa: “Eu não vou criar um reino dos homens tornando-me o mais poderoso, mas sendo o mais pobre”.
Nesta mesma minissérie, o diabo promete ver Jesus de novo e retorna no Getsêmani. Ali, diante da cruz iminente, o tentador procura persuadir Jesus que não valerá a pena dar a sua vida pela humanidade. Ambos caminham por cenas de cruzadas e guerras modernas, onde se mata em nome de Deus. O tentador diz que Jesus pode pôr fim a tudo isso e fazer da terra um paraíso, basta abandonar a cruz e acabar com a pobreza, a fome e as guerras. Jesus argumenta que Deus não criou o ser humano para ser o seu ditador, mas lhe deu a escolha de fazer o bem ou o mal. “Não morra em vão, Jesus, não morra só”, insiste o diabo. Jesus rebate o tentador: “Eu não estou só, estou com o meu Pai… Eu estou no coração do homem. Eu morrerei pela perpétua vontade do coração humano criado pelo Pai, de forma que os homens verão a imagem deles resplandecer mais uma vez e aqueles que quiserem isso irão achar em mim a força para amarem até o fim”.
“A Última Tentação de Cristo”, obra de Nikos Kazantzakis (Rocco, 1988), transformado em filme por Martin Scorsese (EUA, 1988), apresenta uma tentação final. No alto da cruz, ao ser instigado por outro crucificado, Jesus desce da cruz, vai ter uma vida comum daquele tempo… Anos mais tarde, já idoso, seus discípulos se aproximam dele. Judas o questiona por ter descido da cruz. A voz do tentador retorna: “morrerás como um homem”. Numa cena comovente, Jesus se arrasta em meio à Jerusalém que se encontra em chamas e destruição, e dirige-se ao Pai, de braços erguidos, a bradar: “Pai, estás me ouvindo? Ainda estás aí? Dá-me a tua mão. Quero ser crucificado e ressuscitar! Quero ser o Messias”. De repente, o cenário muda. Jesus recobra os seus sentidos, olha as pessoas que o contemplam. Ele permanecia ali, no alto da cruz, mantendo a sua missão redentora. Tudo não passara de uma alucinação. Coroado de espinhos e coberto de sangue, na sua agonia, ele se contorce e sorri, sorri porque permanecera fiel e exclama: “Tudo está consumado” e repete “Tudo está consumado”.
O Pai da mentira continua a tentar Cristo no seu Corpo Místico, que somos todos nós. Suas insídias repetem as velhas práticas: Fake News, prazer, poder, dinheiro. É pelo bolso que o diabo entra no corpo humano como nos advertiu o Papa Francisco: “Por favor, afastem-se da vaidade, do orgulho do dinheiro. O diabo entra ‘pelos bolsos’’” (Homilia, 25/04/2021). No coração de Judas, ele entrou pelo desejo da traição (cf. Mt 26,14-16). No coração de Pedro, entrou pelo desejo de articular outro projeto para Jesus e fazer do Mestre seu seguidor (cf. Mt 16,21-23). Estamos vulneráveis às insídias do tentador.
Aquele “tempo oportuno” de que nos falou Lucas (cf. Lc 4,13) pode ser o “hoje” de nossa história, quando continuamos a ser tentados diante de tantas Fake News espalhadas pelo diabo, que é o pai da mentira. O Papa Francisco nos adverte: “Por favor, dialoguem com todos, menos com o diabo […]. Com o diabo não se dialoga” (Audiência, 04/01/2025). E ele nos orientou sobre como vender as insídias do diabo: “Cristo derrotou o diabo e deu-nos o Espírito Santo para fazer nossa a sua vitória. […] Fiquem atentos, porque o diabo é astuto – mas nós, cristãos, com a graça de Deus, somos mais astutos do que ele” (Audiência, 25/09/2024). É salutar recordar sempre: somos morada do Espírito Santo e a Palavra de Deus está em nosso coração. Eis os dois antídotos contra as insídias do maligno.
O papa São João Paulo II já havia apontado que “a interdependência dos sistemas sociais, econômicos e políticos, cria no mundo de hoje múltiplas estruturas de pecado. Existe uma tremenda força de atração do mal que faz julgar ‘normais’ e ‘inevitáveis’ muitas atitudes. O mal aumenta e faz pressão com efeitos devastadores sobre as consciências, que permanecem desorientadas e nem sequer são capazes de discernir. Se se pensa depois nas estruturas de pecado que detêm o desenvolvimento dos povos mais desfavorecidos sob o aspecto económico e político, chegar-se-ia como que a ceder diante de um mal moral que parece irresistível. Muitas pessoas percebem a impotência e a desorientação diante de uma situação esmagadora que parece sem solução. Mas o anúncio da vitória de Cristo sobre o mal dá-nos a certeza de que também as estruturas mais consolidadas do mal podem ser vencidas e substituídas por ‘estruturas de bem’” (Audiência, 25/08/1999).
No livro II da saga “O Senhor dos anéis – As duas torres” (Tolkien, Artenova, 1975/1976), reproduzido pelo cinema (Peter Jackson, 2002), há um belíssimo diálogo entre Sam (Sean Astin) e Frodo (Elijah Wood), sobre a origem da força interior para vencer o mal no mundo. Frodo está à beira de desistir da missão de destruir o anel, símbolo de todo o mal que há sobre a face da Terra. Ele está cansado, quer desistir frente às dificuldades… Com fome, frio, sem forças, sem esperanças… Afinal, é muito difícil destruir o mal que seduz e tem aparência de bem. É aí que entra um dos mais emocionantes diálogos da obra. Sam diz: “Isso não é justo. Na verdade, nem devíamos estar aqui. Mas estamos. É como nas grandes histórias, Sr. Frodo. As que tinham mesmo importância eram repletas de escuridão e perigo. E, às vezes, você nem queria saber o fim… Como podia o mundo voltar a ser o que era depois de tanto mal? Mas, no fim, é só uma coisa passageira… Até a escuridão tem de passar. Um novo dia virá. E, quando o sol brilhar, brilhará ainda mais forte. Eram essas as histórias que ficavam na lembrança que significavam algo. Mas acho, Sr. Frodo, que eu entendo, sim. Agora eu sei. As pessoas dessas histórias tinham várias oportunidades de voltar atrás, mas não voltavam. Elas seguiam em frente porque tinham no que se agarrar”. Ao que Frodo questiona: “E em que nós nos agarramos, Sam?”. Eis a resposta fabulosa do amigo: “No bem que existe neste mundo, Sr. Frodo, pelo qual vale a pena lutar”.
Vale a pena lutar pelo bem que existe neste mundo! É preciso agarrarmo-nos ao bem que existe neste mundo, pelo qual vale a pena lutar. Continua atual o conselho do Apóstolo Paulo: “Não te deixes vence pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,21). É permanecendo fieis que podemos superar as tentações e o mal do mundo.
Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí