A síndrome de Caim é um grave risco e, para superá-la, é preciso se inspirar na forte exemplaridade de São Francisco de Assis, na sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. Um encontro recordado pelo Papa Francisco, na Carta Encíclica Fratelli Tutti. O Santo de Assis marcou a sua interioridade com um coração sem fronteiras – capaz de superar diferenças ligadas à nacionalidade, etnia ou religião. Iluminou, assim, diversas situações do relacionamento cotidiano, vencendo entraves que poderiam impedir a aliança fraterna. A viagem de São Francisco, recordada pelo Papa, comprova que o Santo de Assis cultivou um coração magnânimo, capaz de transpor qualquer tipo de barreira. O Pontífice sublinha que São Francisco foi ao encontro do Sultão, constituindo exemplaridade para seus discípulos. Sem negar sua identidade, foi capaz de cultivar uma espiritual submissão à criatura humana, a partir do amor de Deus. Somente corações sem fronteiras capacitam-se para a vivência da fraternidade universal.
A postura de São Francisco constitui o oposto da síndrome de Caim, descrita no texto da Campanha da Fraternidade 2024 – Fraternidade e Amizade Social, proposta pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que aponta luzes para o tempo quaresmal. Essa síndrome impede a realização do sonho de uma sociedade fraterna, pela superação de preconceitos, perspectivas e sentimentos que estão na contramão do diálogo, do perdão e da reconciliação. São Francisco, com suas lições que atravessam a história por mais de oito séculos, não fazia guerras ideológicas ou dialéticas. Não fazia imposições ou reagia com hostilidade à ação de opositores. Comunicava sempre o amor de Deus. Caberá sempre a interrogação: por que, no contexto de instituições, das famílias, das comunidades religiosas e em tantos outros, os relacionamentos são tão frequentemente pautados por ressentimentos, agressões, ameaças?
Ressentimentos e agressões ameaçam vidas, tiram o brilho de conquistas, entrincheiram pessoas em disputas fratricidas, emolduradas pela irracionalidade. É indispensável refletir sobre motivações que levam o ser humano a alimentar aversão e ódio a respeito de seu semelhante. Essas motivações apequenam, inclusive, quem já conquistou estatura relevante. Inviabilizam respostas humanísticas capazes de contribuir para o desenvolvimento integral da humanidade. A síndrome de Caim – quando se trata o semelhante com aversão e ódio – ajuda a consolidar indiferenças e discriminações. No fortalecimento de instituições a serviço da humanidade, na busca pela promoção e defesa da vida, não há espaço para cultivar ressentimento ou vingança. Mesmo a profecia, que pode gerar incômodos na sua tarefa educativa, corretiva, com força para interpelar, não pode estar desacompanhada do “espírito franciscano”, sob pena de se transitar mais no território da síndrome de Caim, incapacitando-se para contribuir com o sonho da amizade social, por uma efetiva fraternidade universal.
Constata-se a proliferação da inimizade social, acirrada pelos ressentimentos e disputas que podem tomar conta do coração humano. A síndrome de Caim pode desencadear homicídios, por inveja ou mágoa, nascidas e alimentadas a partir de disputas. Esse mal precisa ser superado com tratamento e investimento espiritual, no horizonte sempre luminoso da Palavra de Deus. Para superar ressentimentos, deve-se exercitar o perdão, buscando o impulso de uma força espiritual que permita ir além do território de razões arquitetadas, e até plausíveis. A reconciliação faz valer o bom e o bem, vitoriosos sobre as sombras de equívocos, injustiças e decisões inadequadas, sem comprometer a efetivação da justiça.
A síndrome de Caim é o território da inimizade social. Caim alimenta-se de um ressentimento que o empurra na direção extrema: o atentado contra a vida de seu irmão Abel, uma resposta ilusória para tentar curar a ferida do seu coração, provocada pela mágoa. A mágoa é expressão de um coração inconsistente, que requer atenção, adequado diagnóstico, para superar fragilidades que alimentam ressentimentos, contribuindo para o rompimento de laços, obscurecendo a visão diante do bem recebido. O coração contaminado pela mágoa pode hospedar ódio, promover perseguição, com falseamentos da realidade. É preciso ser tratado, com a graça de Deus e com práticas espirituais, para alcançar caminhos inigualáveis de humanização. Assim, capacita-se para todos hospedar, como irmãos e irmãs, até mesmo aqueles que, um dia, foram considerados adversários e inimigos.
Somente a reconciliação cura a síndrome de Caim, superando a inimizade social. A síndrome de Caim revela, pois, a responsabilidade de cada pessoa na construção de uma sociedade justa e solidária. Não bastam, embora essenciais, considerações sistêmicas e conjunturais da sociedade. Tudo isso precisa ser fecundado e impulsionado pela decisão pessoal de modelar o próprio coração a partir do princípio partilhado por Jesus Mestre: vós todos sois irmãos e irmãs. Não há outro princípio, não existe outra lógica e nem se encontrará outra prática mais transformadora, com propriedades para impulsionar a consolidação de um novo humanismo. A síndrome de Caim é perigosa e precisa ser superada na constituição dos agentes da amizade social. O caminho é investir na força alcançada pelos que buscam cultivar um coração bom, trilhando caminho similar ao percorrido por Francisco de Assis que, no seu íntimo, encontrou a verdadeira paz – livre do desejo de dominar os outros, fazendo-se um dos últimos e, assim, vivendo em harmonia com todos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte